Há dois correios nesta remota ilha japonesa de cerca de 150 habitantes. Mas apenas um deles entrega cartas para os vivos. O outro não opera oficialmente há três décadas. Em vez disso, o “Correio Perdido” é um repositório de mais de 60.000 correspondências: cartas, cartões de aniversário e mensagens de Ano Novo enviadas de todo o Japão para aqueles sem um endereço de destino. Amigos e animais de estimação perdidos, versões passadas e futuras de si mesmos e, com mais frequência, os mortos.
Awashima é uma das milhares de ilhas do Mar Interior de Seto e fica a cerca de 15 minutos de balsa da costa continental. Até a década de 1990, Awashima tinha um porto movimentado, mas a ilha sofreu o mesmo declínio demográfico que muitas outras regiões remotas do Japão.
Ela se tornou o destino de expressões de tristeza, esperança e saudade que não têm para onde ir. Mensagens que proporcionam alívio momentâneo e, no caso dos mortos, servem como um elo entre o nosso mundo e o deles — mesmo que o papel só possa ser tocado por nós.
Pai,
Já se passaram oito anos. Sora se casou e será pai em março — nosso primeiro neto.
Hoshi está no segundo ano da faculdade e, em janeiro, terá sua cerimônia de maioridade.
Tsuki, no penúltimo ano do ensino médio, se dedica às artes.
Por favor, continue cuidando de nós.
Para Ron, no céu
Oi, tudo bem? Está correndo muito por aí? Conseguiu encontrar o papai? Se sim, peça a ele muitas salsichas.
Nos veremos um dia. Até lá, cuide-se.
Se você não tivesse se tornado piloto…
Teria 94 anos hoje. Meu corpo já não tem a mesma força, talvez não demore para me juntar a você.
Você envelhece na vida após a morte?
É solitário não ter respostas. Mas escrever me ajuda a suportar a ausência.
Por hoje, é suficiente. Espere por minha carta na semana que vem.
Até os anos 1990, Awashima tinha um porto próspero, e a maioria dos moradores eram marinheiros de longas distâncias. O correio da ilha, que oferecia serviço de telegrama, era o único meio de comunicação entre as famílias e seus entes queridos no mar. Mas, em 1991, o posto foi fechado e os serviços foram transferidos, deixando o prédio abandonado — assim como muitas outras estruturas em áreas remotas do Japão afetadas pelo êxodo populacional.
Então, em 2013, a artista Saya Kubota usou o edifício para uma exposição temporária durante o festival de arte Setouchi Triennale. Durante um mês, visitantes puderam enviar cartas ao correio ou ler e escrever mensagens no local. O projeto atraiu mais de 31.000 visitantes e mais de 400 cartas em apenas um mês.
O prédio deveria ser demolido após o festival, mas Katsuhisa Nakata, o ex-chefe dos correios e proprietário do edifício, quis manter o projeto vivo. Ele negociou com a artista para dar continuidade à iniciativa e reformou o espaço.
O Guardião das Cartas
Hoje, o Correio Perdido funciona sob os cuidados de Nakata, que tem 90 anos e ainda administra o local.
O correio abre apenas aos sábados, quando Nakata recebe, lê e processa oficialmente as cartas entregues pelos serviços postais.
“Este é um lugar onde chegam todas as emoções da vida das pessoas — os momentos mais tristes e os mais felizes. Estamos aqui para receber e reconhecer esses sentimentos,” disse Nakata.
Nakata, natural de Awashima, tornou-se funcionário dos correios aos 18 anos, depois que seu daltonismo o desqualificou para ser marinheiro. Trabalhou na agência por 45 anos, sendo 17 deles como chefe dos correios.
Cartas que nunca chegam, mas aliviam o coração
“Oi, como você está?
Já faz 10 anos desde que seguimos caminhos diferentes.
Você sempre foi tão gentil, mas eu era muito egoísta. Te machuquei, e nos separamos.
Ouvi dizer que você se casou e tem dois filhos.
Fico feliz por você estar bem. Eu ainda não me casei e nunca consegui te esquecer.
Até o dia em que eu puder dizer, do fundo do coração, que estou feliz,
obrigado e me desculpe.”
“Já se passou um ano.
Aí deve estar mais animado agora.
Mesmo que seja em um sonho, venha me visitar. Sinto sua falta.
Estou tão sozinho.
Na minha idade, tudo dói. Mas vou continuar firme aqui!”
“Para minhas bonecas,
Me desculpem por ter jogado vocês fora,
mesmo depois de tanto brincar com vocês.
Foi muito divertido.
Agora cresci, estou no ensino fundamental.
Mas tudo isso só foi possível porque vocês foram minhas companheiras na infância.
E me desculpem por ter jogado vocês de um lado para o outro.
Mas sou muito grata por sempre estarem ao meu lado.
Obrigada. E me perdoem.”**
O luto em cartas
Visitantes de todo o Japão viajam até o Correio Perdido para escrever e ler cartas — que são guardadas em nichos acessíveis a qualquer pessoa que entrar no prédio. Para muitos, esse espaço oferece um lugar seguro para expressar sentimentos profundos e universais.
A crença de que os mortos nunca se afastam completamente é comum no Japão.
Embora não haja uma religião dominante no país, as tradições budistas e xintoístas influenciam fortemente as percepções sobre a morte e o além. Muitos japoneses acreditam que os espíritos dos falecidos permanecem próximos e mantêm altares em casa, onde acendem incensos e deixam oferendas de comida.
No festival Obon, uma celebração anual em homenagem aos mortos, as famílias preparam refeições, entretêm e passam tempo com os espíritos de seus entes queridos.
Com o envelhecimento acelerado da população, cada vez mais lugares no Japão passaram a receber cartas endereçadas aos mortos — um fenômeno crescente conforme o país enfrenta a necessidade de lidar com o luto.
Todos os dias, o Correio Perdido recebe de 10 a 20 cartas, a maioria sem remetente ou endereço de retorno. Muitas são escritas para os falecidos, mas outras são dirigidas a versões passadas ou futuras de quem escreve. Algumas são endereçadas a objetos, como brinquedos da infância ou câmeras que alguém deseja comprar no futuro.
Com os anos, Nakata notou que algumas pessoas escrevem repetidamente. Mas duas correspondências o marcaram especialmente.
Uma delas vinha de uma senhora idosa, cujo noivo, um piloto kamikaze, morreu na Segunda Guerra Mundial. Durante anos, ela lhe enviou cartas.
“Se você não tivesse se tornado piloto e vivesse nesta paz… teria 94 anos agora.
Hoje em dia falam da era da vida centenária. O Japão virou um país de longevidade.
Meu corpo já não aguenta muito, posso me juntar a você a qualquer momento.
Mas você pode se assustar ao me ver como uma velhinha.
No além, as pessoas envelhecem? É muito solitário não poder receber uma resposta.
Escrever cartas tem me ajudado a suportar esses sentimentos insuportáveis.
Vou parar por aqui hoje. Aguarde minha carta na próxima semana.”
Outra correspondência era de uma avó que escrevia para seu neto falecido, Yuta, duas vezes por mês, durante anos.
Nakata não sabe por que as cartas pararam de chegar, mas acredita que talvez ela tenha encontrado paz.
“O luto não pode continuar sempre da mesma forma.”
Texto original do Washington Post: https://www.washingtonpost.com/world/interactive/2025/japan-missing-post-office-letters-to-dead/
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Escrever Cartas Que Ninguém Vai Ler: Um Exercício Terapêutico
Nem todas as cartas precisam de um destinatário real. Escrever para quem nunca vai ler pode ser uma ferramenta poderosa de organização mental e emocional. Isso vale para cartas destinadas a alguém que já se foi, para um amor perdido, para um chefe abusivo do passado ou até para uma versão mais jovem (ou futura) de si mesmo. Mais do que um ato simbólico, essa prática tem respaldo científico como um método eficaz de expressão emocional e autoentendimento.
Como Escrever Para Ninguém (E Ainda Assim Se Beneficiar)
A ideia é simples: você coloca no papel o que precisa ser dito, sem filtros, sem medo de julgamento, sem preocupação com respostas. Nessa liberdade, muitas vezes, emergem verdades que você não sabia que carregava. A escrita funciona como um espaço seguro para confrontar sentimentos confusos, liberar emoções reprimidas e, às vezes, até reescrever a própria narrativa sobre certos eventos.
Pesquisas na área de psicologia e terapia narrativa mostram que escrever sobre experiências pessoais reduz a carga emocional de memórias dolorosas e ajuda a processar traumas. Um estudo publicado no Journal of Psychosocial Research on Cyberspace (2023) analisou o impacto de cartas não enviadas na saúde mental e constatou que esse tipo de escrita ajudou os participantes a reduzirem sintomas de ansiedade e depressão. Outro estudo da Revista Brasileira de Terapias Cognitivas (2022) apontou que escrever cartas para si mesmo no passado ou no futuro melhora a autoestima e promove a autocompaixão.
O Que Escrever?
Não existe uma regra fixa, mas algumas direções podem ajudar:
- Para quem você quer escrever? Pode ser uma pessoa real, uma ideia abstrata ou até algo que simbolize um momento da sua vida.
- O que precisa ser dito? Algo que nunca teve coragem de falar? Um pedido de desculpas que nunca pode ser feito? Uma despedida? Um “eu te perdoo”?
- E se a carta nunca tivesse fim? Imagine que você pode voltar a ela sempre que precisar. Isso pode transformar a carta em um espaço de diálogo consigo mesmo.
E Depois De Escrever?
Depois de terminar, você pode:
- Guardá-la e reler mais tarde.
- Rasgá-la como um ato de fechamento.
- Queimá-la como um ritual de libertação.
- Guardá-la em um caderno para acompanhar sua própria evolução.
O mais importante não é o que você faz com a carta, mas o que acontece dentro de você enquanto a escreve.
Na Terapia da Palavra, a escrita não é apenas uma ferramenta de comunicação, mas também de transformação pessoal. Se você quer explorar mais esse processo, venha descobrir como a escrita pode ser um espaço de cura e autoconhecimento.
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Apêndice: Artigos Científicos sobre a Prática Terapêutica de Escrever Cartas Não Enviadas
Para aprofundar o entendimento sobre os benefícios terapêuticos da escrita de cartas não enviadas, apresentamos a seguir uma seleção de artigos científicos recentes que exploram essa prática:
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“O uso das cartas terapêuticas na prática clínica” Este artigo aborda as cartas terapêuticas como recurso na prática clínica, entendidas como forma de documentação e intervenção terapêutica. A partir de uma revisão da literatura, os autores contextualizam o desenvolvimento das cartas terapêuticas, explicitando sua história, usos e funções, além de fornecer recomendações práticas para sua redação.
Link: ψψψ.PsiBr -
“Writing Therapy and the Search for Meaning: A Case History”
Este artigo americano de 2024 apresenta um estudo de caso que ilustra como a terapia através da escrita pode ajudar indivíduos a encontrar significado em suas experiências, promovendo o bem-estar emocional. Link. -
“Writing Technique Across Psychotherapies—From Traditional Expressive Writing to New Positive Psychology Interventions: A Narrative Review”
Publicado em 2021, este artigo inglês oferece uma revisão narrativa sobre diversas técnicas de escrita utilizadas em psicoterapias, incluindo a escrita expressiva tradicional e intervenções baseadas na psicologia positiva. Link.
Esses artigos oferecem perspectivas valiosas sobre a utilização da escrita de cartas não enviadas como ferramenta terapêutica, destacando seus benefícios na expressão emocional e na construção de significados pessoais.