O Terapia da Palavra estava ainda tomando forma no campo das ideias quando me deparei com um livro chamado Como se Faz Literatura, de Affonso Romano de Sant’Anna. Naquela época, início dos anos 2000, comprar livros com pequenas tiragens não era tão simples como hoje. Se bem me lembro, nesse caso, a negociação se deu por e-mail – com direito a envio de comprovante bancário. Acho que custou 12, 13 reais – e falei direto com o próprio Affonso. Ele, gentilíssimo, não só me vendeu o livro (era uma edição própria, da Letra Viva, se não me engano), mas também respondeu a algumas perguntas que enviei.
Hoje, 4 de março de 2025, no dia de sua partida, resolvi compartilhar essa entrevista com vocês. Um pequeno encontro com esse grande escritor, que tanto refletiu sobre o ato de escrever e sobre a literatura como forma de descoberta e transformação.
Capa de uma edição diferente, esta da editora VOZES
Segue o bate-papo por e-mail que tivemos – que, agora, ganha um novo sentido.
Entrevista: O Fazer Literário com Affonso Romano de Sant’Anna
A Escrita Como Descoberta e Transformação
Maria Rachel: Affonso, quero começar te perguntando algo essencial: o que faz uma pessoa ser escritor?
Affonso Romano de Sant’Anna: Escrever, todo mundo escreve. O problema é como você se relaciona com isso. Uma coisa é escrever um bilhete, uma carta, uma anotação qualquer. Outra coisa é começar a sentir que a escrita te provoca, que ela te chama de volta, que o que você não consegue entender no mundo acaba tentando resolver no papel. Aí você começa a desconfiar que talvez seja um escritor.
O escritor é um sujeito que tem a palavra como casa e como labirinto. Ele mora na língua, mas também se perde nela. Ele desconfia do que escreve e tenta de novo. Ele escuta o que as palavras querem dizer. E, de repente, descobre que talvez tenha encontrado uma voz.
Maria Rachel: E há um momento de iniciação na escrita?
Affonso Romano de Sant’Anna: Sim, e muitas vezes é um momento banal. Pode ser uma redação elogiada por um professor. Pode ser um poema que você escreveu sem pretensão e que, anos depois, ainda faz sentido. Pode ser aquela primeira vez que você leu um texto e sentiu que ele falava diretamente com você.
Tem quem comece cedo, como Clarice Lispector, que já sabia desde menina que ia escrever. Tem quem comece tarde, como Pedro Nava, que publicou seu primeiro livro aos 60 anos. Mas não é uma questão de idade. É uma questão de quando você percebe que a escrita te persegue.
A Escrita Como Terapia e Autoconhecimento
Maria Rachel: No Terapia da Palavra, trabalhamos com a ideia de que a escrita pode ser também uma ferramenta de cura. Você vê essa relação entre literatura e terapia?
Affonso Romano de Sant’Anna: Claro. Escrever pode ser uma maneira de organizar o caos. Quando você escreve, às vezes descobre o que pensa. Você olha para a frase e pensa: “Mas eu acho isso mesmo?”
A escrita tem esse poder de revelar e de transformar. E às vezes ela não transforma só o autor, mas também quem lê. Já recebi mensagens de leitores dizendo que uma crônica minha os fez tomar uma decisão importante, mudar de país, terminar um relacionamento. Uma frase pode modificar a vida de alguém. Isso é muita responsabilidade.
Agora, transformar um texto catártico em literatura é outro processo. O desabafo é uma matéria-prima, mas para ser literatura, ele precisa encontrar uma forma. O que era pessoal, precisa ganhar um tom universal. O que era confuso, precisa ganhar ritmo. Isso é parte do ofício.
O Poder da Linguagem e a Cura Através das Palavras
Maria Rachel: E a linguagem? A escolha das palavras pode impactar esse processo?
Affonso Romano de Sant’Anna: A palavra é uma coisa perigosa. Quando você nomeia algo, você dá corpo para isso. Quem tem a palavra, tem o poder. A literatura, de certa forma, é esse espaço onde se pode nomear o que não estava dito, o que estava subentendido.
Machado de Assis dizia que escrever é “dizer o indizível”. E muitas vezes é isso. Encontrar uma palavra para um sentimento que estava sem forma. A escrita tem esse papel.
A Voz do Escritor e o Encontro Com a Verdade
Maria Rachel: Como um escritor sabe que encontrou sua voz?
Affonso Romano de Sant’Anna: A voz se descobre no fazer. No começo, todo escritor imita alguém. Isso é normal. Mas aí, um dia, sem perceber, você já está escrevendo como você mesmo.
A voz se encontra na repetição, no erro, no tempo. E, às vezes, no silêncio também. Saber escrever também é saber esperar o momento certo de dizer algo.
A Escrita Como Caminho
Maria Rachel: E para quem sente essa vontade de escrever, mas duvida de si mesmo? O que você diria?
Affonso Romano de Sant’Anna: Que escreva. Sem medo. Sem esperar estar pronto. Sem essa preocupação se vai ser bom ou ruim. A escrita se constrói na prática.
Tem gente que escreve todo dia. Tem gente que passa anos sem escrever nada e depois faz um livro inteiro. Cada um tem seu ritmo. O importante é escutar essa urgência interna e seguir.
A literatura é um diálogo. Você escreve, e algum dia, em algum lugar, alguém responde.