O filósofo e psicanalista André Martins concedeu uma entrevista à revista Psique do mês de fevereiro, onde defende o valor da filosofia como saber prático. Ao longo da conversa, pontos como autoconhecimento, tempo para reflexão e decisões baseadas nas paixões vêm à tona e provocam uma série de questionamentos. Sem dúvida, uma reflexão que vale não só para esta área de conhecimento, mas também pra a nossa proposta de uso adicional da ferramenta e dos saberes da literatura.
Pra quem curte a proposta e se interessa pelo assunto, vale demais conferir!
Com os pés na vida real
Tendo os afetos como foco e usando para isso os pensamentos de Nietzsche, Espinosa e teorias psicanalíticas, André Martins diz que a Filosofia só é válida se puder ajudar no dia a dia das pessoas
A Filosofia só tem valor se for capaz de transformar a vida real. É o que defende André Martins, professor associado da UFRJ, onde leciona nos departamentos de Filosofia e de Medicina Preventiva. Ele une em seus estudos os pensamentos de Nietzsche, Espinosa e teoria psicanalítica para, entre outras coisas, ajudar as pessoas a entender melhor suas vontades e escolhas. O que há em comum entre os três? O enfoque nos afetos. Tanto Nietzsche quanto Espinosa têm como conceito fundamental de suas filosofias, o afeto. Posição que contrariou os pilares da tradição filosófica e os fez serem vistos como malditos. Por outro lado, ter o afeto em foco é algo que os aproxima da Psicanálise. André Martins, doutor em Filosofia pela Université de Nice (1994) e doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ (2002), se diz antes filósofo, depois psicanalista. Nesta entrevista, ele, que é vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, membro do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva e coordenador do Grupo de Pesquisas Spinoza e Nietzsche (SpiN), explica por que acredita que os homens podem ser livres em suas escolhas, desde que estas coincidam com seus afetos.
FILOSOFIA: Nietzsche, Espinosa e Psicanálise. Como o senhor chegou a essa união? Como e por que direcionou seus estudos neste sentido?
André Martins – Fiz doutorado em Filosofia na França, com o Clément Rosset, que é um grande filósofo e muito irreverente. Cheguei para fazer o doutorado e assistia a todas as aulas dele, que tinham as salas lotadas. Uma das disciplinas foi Teoria Psicanalítica, no curso de Filosofia. Foi aí que comecei a me interessar por Psicanálise, a comprar livros e a ler bastante. Paralelamente a isso, meu interesse sempre foi Nietzsche – também Deleuze e Foucault – e depois Espinosa, que chegou de forma arrasadora na minha vida e me conquistou. São autores que estão pensando o mundo sensível e de alguma forma as reações afetivas. É um tema próximo da Psicanálise. Por me interessar por esses autores, por uma filosofia imanente e não transcendente, por uma filosofia que pensa a vida, acabei me deparando com a questão dos afetos. E, a partir daí, fui também estudar Psicanálise, mas dentro desse percurso individual. Ao chegar ao Brasil, fiz um segundo doutorado em Teoria Psicanalítica e sou membro de sociedades psicanalíticas no Brasil e na França. Aí tudo começou a fazer sentido, a se juntar.
FILOSOFIA : Nietzsche e Espinosa foram incompreendidos em vida e tidos como malditos ao longo da história da Filosofia. Além deste perfil em comum, o que mais aproxima esses dois filósofos?
Martins – O que os aproxima é o que está na origem do fato de eles terem sido incompreendidos e malditos. As filosofias de um e de outro têm pontos comuns que sempre foram polêmicos, pouco aceitos. O próprio Nietzsche me ajuda a responder a essa pergunta porque, em um cartão-postal que escreveu a um amigo, falou que se reencontra em Espinosa em cinco pontos capitais e também na tendência geral de sua filosofia. Ambos tomam o conhecimento como o mais potente dos afetos. O conhecimento ser visto como um afeto é algo completamente diferente da tradição filosófica. E é dito como sendo o afeto mais potente. O conhecimento, neste caso, tanto para Nietzsche quanto para Espinosa, é o conhecimento não só da realidade como dos próprios afetos. Se conhecemos a maneira como somos afetados, como funcionamos – nossas reações e motivações afetivas -, esse conhecimento é o que mais tem poder sobre os nossos afetos e, portanto, sobre as nossas ações. A tradição filosófica sempre buscou uma verdade a priori, ou seja, uma verdade em si ou formalmente verdadeira. Tanto Espinosa, no século XVII, quanto Nietzsche, no século XIX, tentam mostrar que uma verdade formal não existe. Segundo eles, nós só existimos no mundo sensível, na realidade, então a verdade consiste em conhecer esse mundo no qual a gente se insere e não conhecer uma verdade que seja formalmente impassível ou imutável. Esse é o grande ponto em comum entre eles, a tendência geral da filosofia dos dois que os distingue de toda a história da Filosofia.
FILOSOFIA: E quais são os cinco pontos em comum entre os dois enumerados por Nietzsche?
Martins – São eles: a não existência do livre-arbítrio; a não existência do mal – e subentende-se, portanto, que não existe também o bem; a não existência de causas finais, ou seja, de que algo existe no mundo porque tem uma finalidade – por exemplo: Deus criou a fruta para alimentar o homem, ou uma dificuldade para que o homem aprenda a superá-la; a não existência do desinteresse – não existe desinteresse, existem ações interessadas interesseiras e ações interessadas não interesseiras, mas sempre existe o interesse e, por fim, o quinto ponto é a negação da ordem moral do mundo: Nietzsche e Espinosa negavam a existência de um sentido moral intrínseco às próprias coisas, aos acontecimentos, à existência. Acho que Nietzsche foi muito feliz em perceber que esses cinco pontos, que são os pilares da tradição filosófica de toda a história da Filosofia, em particular da Modernidade e do Humanismo, são falhos, não existem, são ficções. Nietzsche foi muito preciso em ver que Espinosa já denunciava esses pontos na aurora da Modernidade.
FILOSOFIA: Falamos sobre os pontos em comum. E fazendo o oposto, qual seria o maior ponto de atrito e de divergência entre eles?
Martins – Diria que a principal diferença é de foco ou de tonalidade. Nietzsche é extremamente passional no jeito de escrever – na vida pessoal nem tanto, era uma pessoa serena, calma, apaziguadora, mas nos textos é muito passional e provocativo: “sou dinamite”, “filosofar com o martelo”. Espinosa, por oposição, não só no texto quanto na própria filosofia e, ao que parece, razoavelmente na própria vida pessoal, propõe um controle, um domínio sobre as paixões. Vejo que ambos têm filosofias distintas, porém muito próximas em pontos fundamentais. Nietzsche seria uma versão mais passional, mais apaixonada de um fazer filosófico. Espinosa seria uma versão mais sóbria ou racional desse mesmo fundo filosófico.intensificação das paixões alegres e das alegrias ativas. Quando Nietzsche fala do engajamento apaixonado, ele está pensando no que Espinosa chamaria de “paixões alegres”. Mas o foco é diferente, Espinosa não está valorizando as paixões alegres, quer dizer, está, mas sem colocar o foco nelas. O objetivo de Espinosa são os afetos ativos, que estão para além das paixões alegres. Digamos, ter as paixões tristes é negativo para os dois, e aí viriam as paixões alegres e os afetos ativos, as alegrias ativas. Nietzsche não dá ênfase aos afetos ativos, embora eles estejam presentes também na filosofia dele. A ênfase que ele dá é – usando os termos de Espinosa – nas paixões alegres.
Nietzsche está sempre fazendo um elogio do engajamento individual da pessoa naquilo que ela faz. Ele preconiza um envolvimento apaixonado na vida, nas coisas que se faz na vida
FILOSOFIA: O que seriam essas paixões alegres e tristes de Espinosa?
Martins – Em Espinosa, um afeto alegre, que pode ser passivo – uma paixão alegre – ou ativo – que é sempre alegre -, é o afeto que aumenta a nossa potência de agir, de pensar, de estar no mundo, de existir. Esse é o afeto alegre: o que nos impulsiona, o que nos expande. É parecido com Nietzsche, que vai falar de uma “Vontade de Potência”, que é uma vontade de expansão. O afeto triste, que é sempre passivo, ou seja, é sempre uma paixão triste, em Espinosa, é o afeto que nos oprime, que nos deprime, que vai contra a nossa potência de agir. Nietzsche vai falar contra o ressentimento, que é um afeto triste. Vai falar contra a submissão, contra seguir a moral do rebanho, contra fazer como todo mundo, que são afetos tristes. Muito embora o uso conceitual seja diferente, eles têm uma afinidade de compreensão do que são afetos. Basta pensar: em Espinosa, o afeto é um conceito central; em Nietzsche, também; e isso é raríssimo na história da Filosofia, que o conceito central de uma filosofia seja o afeto.
o mais potente dos afetos….